sábado, 7 de maio de 2011

UMA LEITURA DA FUNÇÃO (3)

Continuação do anterior


Por: Vasco Pereira da Costa*

O que é facto é que as festas do Espírito Santo, na tradição mais pura do compromisso social, anunciam um reino de igualdade, de amor, de liberdade e de abundância justamente (equitativamente) repartida.

O culto do Espírito Santo não é mais, pois, que um rito de fecundação e de renovação, através dos quais a Terra e o Céu se unem pela vontade ascensional do homem.

Acontece, porém, que, por vezes, são transpostos alguns contornos da condição humana para o esboço do divino e, por isso, corre por aí que o Espírito Santo é muito vingativo.


É provável que esta asserção dimane do terror e da fragilidade das pessoas. Os registos desse deus terrível são inumeráveis, alguns deles transpostos para o papel laborioso dos antropólogos, dos sociólogos, dos etnólogos.

E, a partir desta cirurgia social, torna-se irrecusável os exemplos amostrados por estes operadores que separam os campos do conhecimento e que estabelecem os perímetros da sabedoria – e encheria laudas sobre os mistérios psicanalíticos.

Ora, o que é certo é que os relatos orais, que atestam as iras do Espírito Santo, nessa qualidade e condição, se assemelha aos outros santos que povoam a corte celeste, isto é, com corpo talhado no modelo zoomórfico como a pomba, ficando, todavia, na hagiologia como Senhor – o Senhor Espírito Santo. E, se tem penas, peito em quilha, ossos com ar, moela, isso serve, obviamente, para voar e para ter uma visão aérea do que se passa cá em baixo, ao rés da terra, ordenando o cumprimento da felicidade dos homens viventes.

Trata-se, pois, de uma religião da terra, com uma liturgia em que entra carne e sangue, pão e vinho, contrariando, de algum modo, as promessas de felicidade futura e post-mortem da igreja defronte.

Venera-se um, animal – a pomba; sacrifica-se um animal – o vitelo; festeja-se a alacridade da vida pela fartura de comer e de beber – carniça, vinhaça e panzoada ao deus-dará; envolve-se tudo isto com júbilo e música; adora-se o pássaro fecundador da virgem.

Desafia-se o Poder, porque, com a divina legitimidade conferida pela ave, o servo transforma-se em senhor, o plebeu recebe a coroa da soberania, o pobre ganha a abastança, o miúdo empunha o ceptro do mando, o submisso é ungido como imperador.

Quem, pois, nestas circunstâncias, se atreverá a injuriar o Espírito Santo? Quem ousará o incumprimento das devoções? Quem desafiará este Deus que restitui a prodigalidade da vida, em cada ano preparada e prometida aos homens fraternais? Quem destroçará este apego das criaturas aos ventos, às águas, aos campos e aos fogos – que podem aniquilar mas que também renovam, sazonalmente, as esperanças da vida?

*Director Regional da Cultura


In Revista Verdelho nº 9, ano 2005


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