sábado, 22 de janeiro de 2011

A Praia de Nemésio



Uma terra qualquer, vila ou cidade, é aquilo que o tempo depositou no seu âmago e que a nossa memória afundada assimilou e carreia. Mesteres, ruas, crenças, este assobio que passa e que entretece a noite, aquela badalada que a divide do dia e lembra um anjo falar, o pobre bêbado errante e o cortejo nupcial que a atravessa, tudo é tudo. E mortos queridos, ausentes que não voltam, casas que se ampliaram ou arrasaram… O tempo roda enquanto as cidades ficam. Outras desaparecem ou ressurgem. A Praia é dessas. Ainda há quarenta anos a Praça era a Câmara que lá está, o Corpo da Guarda que se alterou, a casa de morgada vendida e carapuçada de cimento, a velha cadeia de Jerónimo Luís o Mau e do Padre António Vieira. Se ele vivesse veria que só os sismos respeitam os Cáceres. Foram-se as belas escadarias que faziam da Praça um monumento, as arcadas de abrigo para a chuva, o grande chafariz de tornos grossos. Escapou a torre do sino a que o Medeiros dava corda. As barbas o fariam gnomo, e preservou-a. Mas ainda há dias recebi de um amigo uma imagem da Praça pimpamte, com a sua Liberdade ao meio e um empedrado central e elipsóide, com os cantos boleados para os jipes de aeródromo deslizarem…

Vida cainha!

Para que a Praia fosse “cidade” nem lhe faltava, além do relevo urbano, o primeiro sentido daquela palavra em latim. Cabeça de capitania, era um concelho velho e comarca recente. Da capitania donatária ficara a glória e o ressentimento com Angra, a nova capital da ilha. As terras fazem-se por reacção de umas às outras: É a boa emulação civil. Por um lado, na Praia dizíamos – “a Cidade” – por não conhecermos outra (o ilhéu não vê senão o seu palmo de chão e o mar que tudo envolve, transfigura e adivinha). Mas na capital reparava-se que houvesse praienses que diziam só “Angra” (“fui a Angra”), tomando o costume como uma escapatória à subordinação. Para nos arreliarem, em vez do alatinado “praiense” chamavam-nos os “praianos”.

(…) Interiormente, na vila, desvanecíamo-nos com ela. Lá estava a igreja maior recolhendo as cristandades dos campos, de novidade, o tabaco do cabo da Praia, o vinho do Porto Martins, a pedra e o trigo da Lajes e de Vila Nova, a castanha e a farinha da Agualva, a lenha das Quatro Ribeiras, os pêssegos e o vinho dos Biscoitos. Tinham-nos tirado administrativamente uma terra de milho, os Altares, e isso doía-nos na carne. Às segundas e quintas, dias de audiência na comarca, descia o poviléu do monte a pleitear”.

Vitorino Nemésio – in Corsário da Ilhas” – Bertrand 1956 e in Boletim Verdelho n. 9, Ano 2005


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