segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

NEMÉSIO E OS VINHOS DA ILHA

Por: Eduardo Ferraz da Rosa


Segunda-feira dos Biscoitos (1952). Dia de Tourada: - Vitorino Nemésio, em casa de Manuel Gonçalves Toledo Brum, com João de Oliveira Gouveia e Fernando Linhares Brum

1. Um conhecido e proverbial testemunho – aliás bem sugestivo, sobre o ambiente e os contextos artísticos, literários e culturais, mais ou menos animados, fraternais e boémios (como se imagina…), que terão rodeado a elaboração e o selo último do famoso quadro de António Dacosta sobre Nemésio -, conta que o Pintor angrense ao fazer o quadro do escritor do Corsário das Ilhas– e quando ao encimá-lo de remate com a legenda V.N., logo teria interrogado os companheiros próximos sobre o significado das famosas e paradigmáticas siglas…

E então, recorda-se mais, que ao ser-lhe palpitado, indubitavelmente, reportarem-se as letras à indicação sinalética dos nomes Vitorino Nemésio, logo garantiu que não, que não senhor, que era falsa pista e não univocamente tão clara ou perceptível como o retrato parecia mostrar, e que se desenganassem no equívoco, sem sombra, suposto, para dúvida legível!

- Porém ainda, antes que sim, que melhor talvez fosse, mas de outra expressão, quem sabe se sempre nova em velhos odres, e que o ali do trago do pincel para a vista se emborcara não era senão legenda outra, por Vinho Novo, - concluía.

Todavia, a pincelada de Dacosta vem aqui à mesa hoje e ao balcão tocado de cheiros de memória mas é para uma vide de escrita de evocação – de vida, devida e grata – e no ensejo presente de celebrar o Centenário do Nascimento do Poeta da Festa Redonda, ou não tivesse sido toda a nossa Ilha por ele cantada e assim erguida em popular cálice e quadra:

Minha rosa, minha casa,
Meu almário, minha flor;
Arca de pão, minha vinha,
Minha terra, meu amor!

2. Nas páginas de uma publicação enófila – para mais desta terceirense Confraria do Verdelho dos Biscoitos -, a propósito de Vitorino Nemésio e da presença do Vinho na sua vida e na sua obra – tanto real como ficcionalmente -, não deixaria de ser curioso proceder à selecção dos ricos cachos, apuradas castas e preciosas colheitas, que a tal figura de produção e fruto da terra – metáfora poética e trabalho do homem !- o autor de Mau Tempo no Canal concedeu adega literária ou latada castiça…

- E depois, para tanto, não deixariam também de justificar o gesto da apanha, a percepção da cor e o paladar que tal faina deixasse escorrer de balseiros e prensas, ao provarmos, com sede, o escorrer vivo e observante das suas prosas e da sua apurada e única poesia!

Desde aquelas falas do discurso humaníssimo e castiço do conto do Matesinho de São Mateus – “Padaço de Traste”! Tarraço! -, que sem vinho “era o rei dos bensiniados e amigo de carrear”, o tal que para Consuelo, na Calle de las Fuentes, mandara vir “roda de aniz, que chómum amuntilhado, pois sempre era ua bebida doce, e as mulheres gosto daquilho”,- o mesmo que “era o maior gavola que a Vila da Praia tinha” e que


“Pelava-se por vinho e cachaça, entrando às vezes em casa perdidinho de bêbado. É verdade que passava às vezes um mês e mais sem copo (…). O seu fraco era aguardente do balcão – que emborcava, sem pestanejar, aos dezasseis de cada vez. Numa aposta, mesmo, lá ia meio quartilho. Enxugava também com limpeza o seu cálix de nêspera, empinando-se com o nó da garganta a embolar debaixo da papada”,


- até àquelas Décimas & Cantigas de Terreiro –

Meu Primo Chico Maria,
Maioral do meu concelho,
Alfenete de oiro puro
Como vinho de verdelho!

Meu Primo Chico Maria,
Nem visconde nem barão;
Pinheiros da tua casta
Não querem escoras, não!

Meu Primo Chico Maria!
Nas tuas pipas de vinho
Cabia o mar dos Biscoitos
E o povo do Raminho…


Meu Primo Chico Maria,
Dono da Agualva e Fontinhas!
Dizei-me se lá do Céu
Tendes saudades das vinhas…


(continua)


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