quinta-feira, 5 de maio de 2011

UMA LEITURA DA FUNÇÃO



Por: Vasco Pereira da Costa

Não só os helénicos se debateram entre a razão e o mito. Por bandas mais ocidentais, ninguém tão ousadamente quanto nós, portuguesesinhos cheios de engenhos, de artes, de leiguices e manhas, se desunhou por destroçar mitos e impor verdades-outras, verdades novas nas andanças pelas sete partidas do mundo.

Mesmo que, de par com o desvendar das trevas, tenhamos que reivindicar quimeras e fantasias, que são perfeitamente legitimas. Os padrões que erguemos pelas costas dos continentes foram tantos como as aras que benzemos, as relíquias que prezamos, os santos que moldássemos bem sem grande convicção e muito menos ortodoxia. Acabámos por ser os Senhores mais Escravos da Terra e os crentes mais iconoclastas do mundo. Para sempre, assim ficámos, perplexos e confusos, perante a vastidão das criaturas, infundindo a incerteza nos credos, nos tempos, nos espaços, nas ideias. Por isso, talvez sejamos, irremediavelmente, o País dos Poetas.

Se tomarmos, por exemplo, as festividades do Espírito Santo, deparamos com uma poética envolvente, vivida, comungante, acto social de participação, de catarse comunitária, de compromisso aceite.

Nessas festividades acumulam-se heranças cuja transmissão é de difícil destrinça – decerto provirão de ideais de franciscanos e de previsões jaquimistas, por certo, com balizas cartesianas, terão contribuído para a construção da cidade ideal dos socialistas utópicos do séc. XVIII; poderão recuar até ao tempo em que os deuses desciam do Olimpo – de um Olimpo qualquer – e se misturavam com os homens; de um tempo em que os homens se juntam aos animais com uma fraternidade solidária e, agora, religiosamente, ecológica. E todos – deuses, homens, animais e plantas – submetidas aos astros, deixando-se conduzir pelo sopro de ar, pelas correntes das águas, pelas fumigações da terra, pelas sudações do fogo; cumprindo todos a caminhada sazonal das auroras, dos dias, dos crepúsculos, das noites.

Um homem; uma pomba; um vitelo; a terra; o céu.

Do que conhecemos da civilização minóica, e pelo que presenciamos, das festas ao Espírito Santo, no palácio do Rei Minos, em Creta, não teriam melhor cumprimento os ritos agrários e remotos da criatura suprema que pisa a Terra: rituais de fertilidade, liturgias de abundância, sacrifícios de sobrevivência, santificação da prodigalidade, agradecimento pela generosidade dos campos. Por isso, é que não resisto à tentação de estabelecer uma linha de continuidade entre o homem atlântico (ou, se preferirem, neste caso, com toda a propriedade) entre o homem atlântico e o mediterrânico, entre um rei de uma civilização extinta, que legou o seu palácio e os seus frescos de encantamento, e um imperador efémero, porém ufano, que é senhor de um Império exíguo, mas que aguarda o Grande Império do Espírito.

Num fresco de Crossos, figura um toiro, em cujo dorso um jovem executa uma arriscada cabriola antes de ser recebido por uma esbelta figura feminina que há-de consolar em seus braços tenros. Poderia rememorar Afrodite, que viaja num carro esplendoroso puxado por duas pombas – vigorosas e divinas – através do Olimpo a deusa clara, de olhos grandes como os de uma vaca, tal qual a sua companheira, que resplandecia sob os raios de Rá, no Egipto remoto.


Continua

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