segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Paisagem Báquica – Memória e Identidade (3)

O anterior aqui

Por: Aurora Carapinha *


No caso presente não definir uma politica de conservação e de gestão para a paisagem dos Biscoitos é não só por em risco a produção do Verdelho como contribuir decisivamente para diminuir o universo do vocabulário português. Certamente, os termos e expressões como curraletas, calçada da vinhas, travessas, alvião dos biscoitos, enxada das covas, entre muitas, mais (ligadas á arte do ferro, da cestaria e á da construção da paisagem) que a minha ignorância não permite mencionar, desaparecerão. É impedir que as gerações futuras compreendam alguns dos momentos literários mais ricos da nossa literatura lavrados pelos nossos escritores e poetas. Onde não só se canta a nossa paisagem como se compõe um belíssimo texto em torno do acto tão simples que é brindar com um pouco de paisagem sublimada que todo o vinho é. Numa pesquisa que reconheço bastante incompleta e mesmo superficial que fiz na literatura portuguesa encontrei várias referências a esta paisagem assim como ao vinho de verdelho que aqui se produz. Vitorino Nemésio é disso exemplo. No seu conto “O Cravo de Consuelo” refere "(…) Sorvemos um caldo de finos macarrões com gema de ovo dentro; veio uma travessa de arroz coroada de pimentos que me fizeram caretear; comeu-se uma espécie de pudim crivado de passas pequeninas, e tudo regado a Verdelho da terra ou da Graciosa, e a anis com o café, que não provei".

É, ainda, negar uma cultura e uma sabedoria paisagística tão forte em Portugal, cuja melhor prova reside nas nossas paisagens tradicionais e no nosso pendor franciscano de entender a Natureza.

Sabemos, infelizmente por experiência própria, que não chega classificar que não chega proteger, pois se assim fosse alguns dos atentados que se cometeram contra o património cultural não tinham ocorrido. Veja-se o caso da Quinta da Bacalhoa Classificada como Monumento Nacional. O problema é muito mais vasto e complexo, de facto um problema cultural que atravessa a sociedade portuguesa. Atingindo aquelas a quem foi conferida a responsabilidade de zelar pelo nosso património cultural.

A esta ignorância associa-se o princípio da facilidade. Escolhe-se sempre o caminho mais fácil. Assistimos, há poucos dias, a essa opção pelo facilitismo. Perante a afirmação, à qual assistimos atónitos, proferida por um adolescente que “Os Lusíadas eram uma Grande Seca” é mais fácil retirar a obra maior da épica portuguesa do programa de Português do secundário do que procurar melhorar qualidade do ensino e da interpretação dos Lusíadas.

É mais fácil permitir a urbanização ou simplesmente deixar mesmo promover a descaracterização de uma paisagem que definir um plano de gestão e manutenção de uma paisagem cultural, de forma holística e com uma visão humanista.

Todos os dias constatamos a existência de novos avanços científicos e tecnológicos surpreendentes que nos deslumbram pelo que muitos deles podem significar. Isso leva-nos a afirmar que neste limiar do século XX estamos mais sábios mas, contudo muito mais ignorantes culturalmente. Falta-nos a sabedoria. Nunca se falou tanto em sustentabilidade, em conservação da natureza, em ambiente, em património natural e paisagístico, nunca se viram tantos estudos e inventários sobre esta temática. Mas a situação objectiva é bem diversa. Ou seja não chega parecê-lo é preciso sê-lo.

Vive-se um grande momento de transformação, confuso, provavelmente a pequenez das nossas vidas não nos permitirá compreender o sentido deste ciclo. Possivelmente é algo incomensurável e por isso mesmo moroso.

Mas por isso mesmo é premente que tenhamos a capacidade de sonhar, de conceber politicas antecipativas, coerentes que garantam a nossa identidade cultural. E, a nossa paisagem assim como a nossa língua é, sem dúvida, um dos principais pilares da nossa identidade cultural. Evoquemos, mais uma vez Miguel Torga e o seu poema “A Vida” do seu livro “Poemas Ibéricos”:

(…) o caminho é saibroso e franciscano
Do berço à sepultura;
Mas a grande aventura
Não é rasgar os pés
E chegar morto ao fim;
É nunca, por nenhuma razão,
Descrer do chão
Duro e ruim!

A vida tem destas coisas,

Biscoitos – Agosto de 2001


* Professora Auxiliar da Universidade de Évora

In VERDELHO - Boletim da Confraria do vinho Verdelho dos Biscoitos - Ilha Terceira- Açores- Ano VI-Nº 6 ano 2001.



Alguns artigos relacionados com a paisagem vitícola dos Biscoitos:


“Provedor de Justiça dá razão à Confraria” (ano 1999) aqui.

“Museologia de Interpretação da Paisagem Ecomuseu dos Biscoitos, da ilha Terceira” - por Fernando Santos Pessoa (ano de 2001) aqui.

“A Paisagem Açoriana dos Biscoitos” - por Gonçalo Ribeiro Telles (ano 2002) aqui.

“A Vinha, o Vinho dos Biscoitos e o Turismo” - por Margarida Pessoa Pires (ano 2009) aqui.

"Vindima com quebra superior a 75% " aqui


1 comentário:

rui ramos disse...

E sempre um prazer ver as belas paisagens dos biscoitos, trás boas recordações ( TEMPOS EM QUE FAZIA "PASTAÇÃO NOS BISCOITOS)Agora faço restauração em S. Miguel, mas reconheço que e mais alegre estar ai e com pena que não estou.

www.ogatomia.com