segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Paisagem Báquica – Memória e Identidade (2)

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Por: Aurora Carapinha *


A vida tem destas coisas. Pois quando escrevi estas linhas estava muito longe de saber ou mesmo imaginar que algum dia as podia partilhar com a paisagem que as originaria. Assim como estava longe, de aqui estar, há um tempo atrás quando escrevia num jornal diário, de referencia no panorama jornalístico português contra a instalação e ampliação de uma vinha numa das quintas de recreio mais emblemáticas de Portugal, a Quinta da Bacalhoa. Pois aquela acção destruiu um dos poucos jardins históricos classificados em Portugal.

Hoje estou aqui porque aceitei um convite, que muito me honra para falar sobre numa paisagem magnífica que a produção da vinha esculpe em território duro, telúrico, vulcânico da ilha de Jesus Cristo, a Terceira.


Aqui estou para participar, de forma humilde, nesta querela entre Vulcano e Baco em que o terceirense foi o verdadeiro demiurgo. Onde a natureza bruta se transformou pela mão do Homem numa paisagem cultural viva, produtiva.

Esta minha posição parecerá talvez para alguns contraditória. Perguntar-se-á como em tão pouco tempo se podem tomar posições tão díspares. Enganam-se aqueles que encontram aqui uma contradição. Nada me move contra a vinha e contra as paisagens que ela determina.


Entre a Quinta da Bacalhoa, em Azeitão, e esta paisagem, que hoje nos recebe e acolhe, entre estas duas realidades, que à partida muitos, talvez, considerem distintas, há algo que as une e irmana. E é essa circunstância que me leva a interessar por ambas: a sua dimensão enquanto espaço de representação da nossa identidade cultural. O sue valor patrimonial. A nossa singularidade paisagística. Esta paisagem e aquela Quinta são únicas no mundo.

Só aqui nos Açores esta paisagem báquica existe. Só aqui encontrou condições para surgir. Pois, só aqui se cruzou este território com o engenho e arte de transformar aquele em paisagem. E como diria Simon Schama, autor de um livro intitulado “Paisagem e Memória”, que há três anos atrás foi bestseller nos E.U.A. (infelizmente em Portugal ainda estamos muito longe de realidade em que um livro sobre a dimensão da paisagem enquanto memória e identidade, atinja o primeiro lugar nas vendas). Retomemos as palavras de Simon Scham. “A Paisagem compõe-se tanto de camadas de lembranças, quanto de estratos de rochas”. Esta asserção assenta perfeitamente na realidade que aqui nos trouxe.

A paisagem báquica dos Biscoitos configura uma memória nacional, uma identidade insular. Não se esgota numa reticula regular que controla o território, que transmuda terreno estéril em terra produtiva e nectariana. É de facto uma camada de lembranças com cinco séculos. De memória colectiva mas também individual, que nos fala de um saber atávico e de uma relação única, singular entre o homem e a natureza.

Delapidar esta paisagem, ou outra qualquer paisagem cultural é, em nossa opinião, delapidar a nossa memória colectiva, é contribuir para o desaparecimento da nossa identidade. É apagarmos representações da nossa singularidade cultural, a nossa maior riqueza nessa era de massificação e homogenização. E convoco, aqui à colação Miguel Torga e a paisagem duriense, para que através deles creditamos a nossa afirmação. Torga ao referir-se àquela, também ela vitivinícola, escreve: “Doiro, rio, e região, é certamente a realidade mais séria que temos… E é, mapa da pequenez que nos coube, a única evidência incomensurável com que podemos assombrar o mundo”.



(continua)

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