segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Paisagem Báquica – Memória e Identidade

Por: Aurora Carapinha *


A vida tem destas coisas.

Visitei pela primeira vez os Açores, em Maio de 1985, a vinda prendia-se a razões académicas que tinha, e tenho, a duas queridas alunas, agora colegas, que haviam escolhido a Ilha Terceira para desenvolver o seu trabalho de fim de curso da licenciatura em Arquitectura Paisagista. Já não me recordo bem se foi durante a minha permanência aqui ou se durante a viagem de regresso ao continente que a marca impressiva que a paisagem terceirense me havia causado transbordou em escrita, no bloco que sempre me acompanha.

Ao aceitar o honroso convite que me foi feito para participar na festa da vinha e do vinho, a memória daquela paisagem surgiu célere, viva e mais uma vez, impressiva no meu espírito e com ela a lembrança das poucas linhas que aquela me havia suscitado.
É um texto simples, sem qualquer recorte literário, direi mesmo intimista mas, que gostaria de compartilhar convosco, pois considero-vos os culpados, os responsáveis, os fazedores desta magnifica paisagem e, sem dúvida, responsáveis também daquela minha experiência.

Escrevi, então:


“Tudo começa muito calmamente como quando se conhece alguém com uma conversa tímida, intercurtada, cheia de frases curtas que com o tempo se dilatam e fluem rapidamente quantas vezes chegando a não ser preciso falar, apenas olhar.

Assim é, também, com a paisagem. Ela interroga-nos e nós interrogamo-la. No início timidamente, depois é uma troca constante de ideias, palavras, longos diálogos. Até que um simples olhar é um mundo rico e vivo.
Tudo isto é a apaixonante aventura de conhecer, desfrutar, viver para além de nós, viver com tudo o que nos envolve.

Vivendo, tão somente, vivendo.
Compreender, conhecer uma paisagem é vivê-la, senti-la a cada passo da nossa existência. No início olhámo-la pela forma, pela imagem que se oferece ao nosso olhar. Olhamos, exploramos cada um dos seus pormenores. Valorizando aquilo que nos toca. Olhamo-la de uma vez, tentando retê-la no nosso espírito. Assim é também quando canhemos alguém. O primeiro contacto é visual, é a imagem que está diante dos nossos olhos, sem mais nada. Pouco a pouco, essa imagem vai-se preenchendo, completando de modo a compreender o porquê da sua forma de ser e estar, compreensão essa feita a partir de conversas, pensamentos, curiosidades que vão surgindo ao longo do tempo.

Assim, nos apercebemos que o outro é fruto das vivências que teve, das pessoas que conheceu, do código genético que os seus antepassados lhes legaram (tal como a cultura o é para a paisagem).

Desta forma a primeira impressão que colhemos é enriquecida, adquire significados e não é mais que uma forma que se recorta no espaço. Ela é múltipla e oriunda de várias origens que vão sobrepondo, alterando, sedimentando e transformando ao longo do tempo.

Também assim é com a paisagem. O primeiro contacto é uma imagem que se recorta no horizonte, mas que só se poderá compreender, sentir e viver quando ao longo de tempo de ponderação, de estudo, de aquisição de conhecimentos, se se tocarem as razões daquelas forma mas para isso é necessário (como para conhecer uma pessoa) que estejamos predispostos, que o queiramos. E que desejamos deixar um pouco de nós a outrem, quer esse outrem seja uma pessoa ou um sítio.

Só assim poderemos conversar, dialogar e intervir na paisagem que se oferece ao nosso olhar. De súbito todas as linhas, espaços, volumes e cores, que antes eram apenas combinações plásticas adquirem novos significados. Estabelece-se um diálogo. Desfruta-se plenamente o sítio. Ele faz-se lugar. (Paisagem/Território).

Mas, tal como na relação entre duas pessoas algo nos escapa (quantas vezes não sentimos já isso), há sempre qualquer coisa que nos foge por entre os dedos. Algo que funciona como a alma, o íntimo da paisagem. O segredo nunca revelado, mas que se respeitosamente se consente. Desse segredo nasce o desejo de conhecer cada vez mais e melhor.”



(continua)

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