Por: Oliveira Figueiredo
Retinto, encorpado, suave e com boa graduação alcoólica, é frequente, nas nossas aldeias, identificar um vinho destes com o sangue de Cristo. À expressão popular “este é que é o verdadeiro sangue de Cristo” tanto serve para qualificar o melhor vinho da própria lavra que se oferece aos amigos como para manifestar a satisfação que esse vinho nos dá, particularmente se é tinto.
Mas, terá sido mesmo tinto o vinho que Jesus bebeu e deu a beber aos seus amigos na última ceia que comeu com eles antes de ser morto?
A questão nunca terá sido levantada, talvez porque os primitivos cristãos se tenham limitado a repetir a acto eucarístico, nos ágapes em que comiam o pão que toda a gente comia e bebiam (quando bebiam) o vinho corrente nos lugares onde habitavam, como, por certo, fez Jesus, sem preocupar-se com a cor. Não era por ser vermelho que o vinho se transubstanciava.
Há uns quatro ou cinco anos, num congresso realizado em Asti, no Piemonte, Itália, sobre o vinho de missa, foi referido, a propósito de certos vinhos que se deterioravam e, portanto, se tornavam impróprios para a celebração da Eucaristia, que os Filhos de S. José, uma comunidade de religiosas que produz cerca de 8700 litros de vinho de missa, conhecidas entre os sacerdotes como as irmãs do vinho branco, continuam a comercializar um produto natural, tal como exige o Direito Canónico, mas que não é muito agradável. Os processos que continuam a utilizar, diz a notícia, são os mesmos de há dois mil anos.
Pela notícia, poderia concluir-se, que desde há 2000 anos o vinho da missa é branco. E, valha a verdade, confere com as pesquisas feitas para esta abordagem de uma matéria que nem sequer é muito substancial, ainda que desperte curiosidade.
Vejamos, entretanto, a cor do vinho que nos mostram (?) os grandes artistas que pintaram a Ceia de Cristo. Comecemos pela, porventura, mais famosa de todas, a que Leonardo da Vinci pintou a fresco, no refeitório do priorado de Santa Maria da Graça, em Milão, cerca de 1495 e 1498 (há quinhentos anos, portanto, tantos quantos faz a viagem de Vasco da Gama à Índia). Ora, apesar de ter demorado três anos a completar o “retrato” da ceia pascal (onde não podia faltar nem o pão ázimo nem o vinho), a última ceia que Jesus que Jesus comeu com os discípulos, do vinho não transparece a cor, nem quaisquer vestígios da bebida. Como se explica isto? A “Ceia” do mosteiro de Santa Maria da Graça começou por um estratagema de Ludovico de Sforza para se ver livre da presença de Leonardo durante algum tempo. Mandou-o ir ter com o pintor do mosteiro o qual teria uma encomenda a fazer-lhe. O certo porém queixava-se ao príncipe Ludovico de que doze meses passados, o mestre ainda não pusera na parede um único traço de tinta. “E, em todo este tempo, lamenta-se o religioso, as adegas do priorado sofreram profundo desgaste, estando agora praticamente secas, pois mestre Leonardo insiste em provar todos os vinhos até encontrar o ideal para a sua obra-prima, recusando-se a trabalhar noutras condições que não essas”. Porém, não terá sido por excessos do mestre, antes pela necessidade de alimentar os aprendizes que diariamente levava consigo para o priorado.
Quanto às “últimas ceias” portuguesas, das três mais importantes, a primeira do retábulo da Sé de Viseu, pintado entre 1501 e 1506 por Vasco Fernandes, Francisco Henriques e colaboradores (hoje no Museu Grão Vasco) pouco nos revela da cor do vinho: Cristo pega num cálice com a mão direita, mas não se vê o conteúdo; numa das extremidades da mesa vê-se um copo, meio-cheio, de cor levemente rosada. A segunda “ceia”, pintada por Francisco Henriques entre 1506 e 1511 para a igreja de São Francisco, em Évora, (hoje no Museu Nacional de Arte Antiga), não nos revela absolutamente nada. Cristo tem na mão uma taça mas não se vê o conteúdo. Finalmente, a que pintou Vasco Fernandes (Grão Vasco) de colaboração com o seu discípulo Gaspar Vaz, para a capela de Santa Marta do Paço Episcopal da Fontela (Viseu), tão pouco nada nos diz acerca da cor que os artistas terão imaginado para o vinho contido na tara que Jesus segura com a mão esquerda e abençoa com a mão direita.
Acerca de Cristo e do Vinho, uma das certezas que temos é de que Jesus bebia vinho e fazia-o abertamente. Basta referir o episódio (Marcos 2, 16,) em que o evangelista nos descreve a estranheza, senão mesmo escândalo dos “ escribas do partido dos fariseus”
Que “vendo-O comer e beber com pecadores e publicanos”, apostrofaram os discípulos: “Porque é que ele come e bebe com publicanos e pecadores?”.
Mas bebia conforme as regras estabelecidas e nas ocasiões prescritas, uma vez que, como dizia (Mateus 5, 17), “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-la mas completá-la”, ou seja cumpri-la e aperfeiçoá-la.
Continua
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