segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Biscoitos e Vinho em Festa (3)


Música, Trabalho e Vinha (2)

Por: Bruno Bettencourt *

(Continuação do anterior)

Vinhas da Casa Agrícola Brum - Biscoitos 

“Se há trabalho rural revestido de dureza, a vitivinicultura é um deles. Também aqui a música desempenha um papel preponderante no “auxílio” ao homem da vinha e do vinho. As primeiras referências da relação música – vindima, surgem de forma iconográfica na antiga Grécia no séc. VI a.C. Nesta simbiose havia um instrumento musical que desempenhava um papel fulcral: o aulos. O aulos era um dos instrumentos principais da Grécia antiga e está na origem das flautas que existem actualmente. Poderia ter várias conformações, podendo ser composto por um ou dois tubos. Estava presente nos mais diversos momentos da vida ateniense e era associado, como não poderia deixar de ser, a Dionísio, deus do vinho e das festas. Há ainda referências escritas que referem a existência da “canção do espremedor” que era entoada durante a pisa das uvas: “epilenion aulema”. Era assim costume cantar-se em coro durante a referida tarefa. A utilização do aulos atravessou os séculos e espalhou-se ao longo do Mediterrâneo, havendo registos do séc. XX que referem a sua utilização em trabalhos agrícolas de forma a impedir a dormência dos trabalhadores.

A utilização de música durante a pisa das uvas ainda acontece em algumas das regiões vitivinícolas de Portugal. Este costume chamou a atenção de um viajante brasileiro que em 1918 passou pelo nosso país e mais tarde a ele faz referência quando escreveu “Bem-vindos pés lavados que o calcastes [o vinho], enquanto gemiam cantigas sensuais, no tanque do lagar.” Aqui, tal como na Grécia antiga (e indo de encontro ao que já foi referido anteriormente), a utilização da música na vindima e em especial na pisa da uva, ajuda a manter o ritmo simultâneo e compassado, estimula o ânimo a suportar o esforço e o cansaço resultantes dessa atividade repetitiva e exaustiva. Uma vez mais, a melodia funciona como um factor reconfortante para o espírito, possibilitando um certo entretenimento durante a labuta.

 Nos Açores e neste caso, na ilha Terceira, não existe informação concreta relativamente a que momentos específicos do trabalho rural correspondem determinadas modas tradicionais. Há ténues referências que indicam, por exemplo, as “Chamarritas” como sendo modas de eira, mas mesmo aqui poderá não haver relação directa com o desempenho de uma actividade laboral.
Por outro lado, e correndo o risco de me contradizer, não é desejável etiquetar o tradicional de forma forçada e fundamentalista, como muitos gostam de o fazer. Quanto mais simples e solitária é a interpretação de uma melodia, maior é a liberdade de quem a interpreta. Assim sendo, e a título de exemplo, um podador de vinha tanto poderia entoar algumas cantigas do “Pezinho dos Bezerros” (que tinha ouvido em tempos na sua freguesia) ao ritmo do timbre metálico da sua tesoura de poda, como assobiar o “Meu bem” enquanto se recorda de alguém que está longe?

O vinho e a música têm muitas semelhanças. A sua forma inicial, a videira, é muitas vezes trabalhada ao som de melodias simples entoadas pela voz de quem dela cuida. Aqui não interessa se a voz é mais ou menos afinada. É o ponto alto de democratização musical. Todos cantam. São ambas as formas mais “simples”, quer de música, quer do início de vida do vinho. Posteriormente vem a vindima. Aqui mais vozes se juntam enquanto trabalham. A complexidade aumenta, quer a nível musical (já se começa a notar alguma harmonia) quer a nível vinícola (já temos uvas maduras). Segue-se a próxima fase: a pisa da uva, um processo mais preciso a que se alia uma música mais elaborada. Já são incluídos outros instrumentos que não apenas a voz. Finalmente, e após todo o processo de fermentação e composição, temos o vinho propriamente dito. Uma complexidade de aromas, de cor, de sabor à qual se alia a música dita mais erudita. Recorrendo a uma alusão talvez um pouco poética, podemos dizer que num copo de vinho, seja ele mais ou menos encorpado, branco, verde ou tinto, além do cheiro e do paladar, também é possível ouvir todo um conjunto de melodias que o acompanharam durante a sua elaboração. Talvez por isso essa mesma música se apodera daqueles que vão abusando do néctar de baco.

Por fim, colocando todo o conhecimento de lado, temos a principal característica partilhada entre o vinho e a música: ou se gosta, ou não se gosta!”








* Bruno Bettencourt 

Curriculum – resumo

Bruno Filipe da Silva Bettencourt
Nascido a 17 de Outubro de 1980
Natural de S. Bento, Angra do Heroísmo

  Licenciado em Biologia pela Universidade dos Açores (Pólo de Ponta Delgada)
  Doutorado em Ciências Biomédicas pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto
  Técnico Superior no Serviço Especializado de Epidemiologia e Biologia Molecular do Hospital de Santo Espírito de Angra do Heroísmo
  Investigador do Instituto de Biologia Molecular e Celular, Porto
  Participou em diversas conferências internacionais
  Autor e co-autor de diversos artigos científicos
 Membro do Grupo de Baile da Canção Regional Terceirense (desde 1994), do qual foi Presidente da Direcção entre 2006 e 2009
  Foi membro da Direcção do COFIT – Comité Organizador de Festivais Internacionais da Ilha Terceira
  É Presidente da Direcção da Associação de Atletismo da Ilha Terceira
  É Presidente da Direcção e membro fundador da Associação Real Extudantina dos Açores
  Frequentou a Escola de Violas de S. Bento em 1991, tendo aprendido violão e viola-da-terra da Terceira
 É formador musical e leccionou Viola-da-Terra da Terceira em cursos promovidos pela Escola de Violas do Grupo de Baile da Canção Regional Terceirense e pela Casa de Pessoal do Hospital de Santo Espírito de Angra do Heroísmo

(continua)



Sem comentários: