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Música, Trabalho e Vinha
Por: Bruno Bettencourt *
“Música, Trabalho e Vinha” na XXII Festa da Vinha e do Vinho dos Biscoitos
“A música é talvez a forma de arte mais democratizada e de mais fácil acesso a todos quantos a queiram produzir e dela usufruir. Este facto advém, em primeira instância, da existência de um “instrumento portátil” que utilizamos no nosso dia-a-dia: a voz.
Antes de mais importa procurar definir o que é a música. Não é fácil! A palavra tem origem grega (musiké técne) e significa “a arte das musas”. Numa definição mais abrangente e ao mesmo tempo mais simplificada, podemos dizer que a música é uma forma de arte que consiste na combinação de sons e ritmos, segundo uma organização de tempo estabelecida. Apesar desta definição, a música está em constante mutação, uma vez que vão sempre surgindo novas formas de controlar e modificar os factores referidos: som, ritmo e tempo.
Há evidências que remetem a origem da música para a pré-história, colocando a sua evolução em paralelo com a da humanidade. Em resultado, actualmente não existe civilização que não possua as suas próprias manifestações musicais, sejam elas mais ou menos complexas. Neste contexto, além de poder ser considerada uma forma de arte, em muitas culturas, a manifestação musical transcende o aspecto contemplativo passando a ser um elemento fundamental do quotidiano. Surge assim um conceito cuja base se desenquadra aspecto artístico: a música funcional. Como o nome indica, esta é uma vertente que está associada com o desempenho de uma determinada actividade. Exemplo disso são as marchas militares, a música direcionada para a terapia, os rituais religiosos e, entre outros, o trabalho agrícola. A música funcional insere-se num conceito maior, a música tradicional.
Quando falamos em música tradicional, estamos realmente a falar de um conceito abrangente, mas que ao mesmo tempo é utilizado para caracterizar manifestações de locais específicos. Estaremos assim a caracterizar a música que tem origem nas raízes de um determinado povo de uma determinada região e num contexto social próprio. Apesar de aqui ser referido o povo como depositário de uma tradição que se vai transmitindo de forma oral, segundo alguns etnomusicólogos, não se deve confundir música tradicional com música popular. A música popular tem uma clara influência da tradicional, mas devido a alguns aspectos particulares, constitui um género à parte. Esta separação, claro está, é controversa e bastante difusa, não sendo possível traçar uma linha concreta que nos permita separar os dois géneros, ou não estivéssemos nós a falar de música. Passo a citar uma pequena descrição sobre música tradicional que de certeza nos ajudará a perceber melhor o seu enquadramento: “A grande característica da música tradicional é a sua indissolução do seu contexto vital. Não nasce como um objecto estético que se valorize e admire por si só, mas sim como uma música funcional associada ao trabalho duro do campo. Existindo apenas como uma memória no seu contexto original, representa a psicologia, um modo de vida de um povo e os fósseis de um passado remoto.”
Apesar de em 1843 Almeida Garrett ter publicado o primeiro volume do seu “Cancioneiro e Romanceiro Geral”, o estudo da música tradicional, em Portugal, tem o seu início efectivo com a publicação, em 1872, da obra “Músicas e Canções Populares Coligidas da Tradição” da autoria de Adelino António Neves e Melo. Neste trabalho foram transcritos textos e melodias de Coimbra, do Minho, de Trás-os-Montes e dos Açores. Mais tarde, entre 1893 e 1898, surgiram os três volumes de uma das mais emblemáticas obras de etnomusicologia nacional, o “Cancioneiro de Músicas Populares” de César das Neves. Ao contrário da obra anterior, aqui foram incluídas transcrições de temas recolhidos em todo o território português (incluindo as colónias de então), de regiões rurais e urbanas, e exemplos de canções estrangeiras entretanto popularizadas em Portugal. Este cancioneiro tem o pormenor de ter sido o primeiro a procurar dividir os temas por género (ex: chulas, cantos marítimos, cantos religiosos). Apesar do valor reconhecido destas obras, grande parte do conhecimento que hoje se tem, no que diz respeito à música tradicional, resulta do trabalho do Prof. Artur Santos, em que foram incluídas gravações fonográficas. Foram feitas recolhas entre 1936 e 1969 sobre a música da Beira Baixa e Beira Alta, e das Ilhas Terceira, de S. Miguel e Santa Maria, para além de estudos inéditos noutras regiões de Portugal Continental, na Madeira e em Angola. Muitos foram os discos, de reconhecida qualidade, que daqui resultaram. Mais tarde, Michel Giacometti, em parceria com Fernando Lopes-Graça, também se dedicou à recolha e gravação fonográfica das manifestações do povo português, entre 1960 e 1970. Daqui resultou a “Antologia da Música Regional Portuguesa”. Actualmente, Tiago Pereira, com o seu projecto “A música portuguesa a gostar dela própria”, tem contribuído para que sejam feitas novas recolhas e para que a música tradicional comece a ser encarada de outra forma, sobretudo pelas gerações mais novas. Neste último exemplo, as redes sociais têm sido preciosas aliadas na divulgação.
Apesar do muito que, felizmente, tem sido feito para preservar a música tradicional, continua a pairar o receio de toda esta riqueza poder desaparecer, em benefício da globalização musical que de forma agressiva se vai aliando à máquina comercial e nos invade o gosto. O etnomusicólogo Ernesto Veiga de Oliveira (1982) deixou bem clara a importância do problema, quando afirmou "Quem tocará ainda a bandurra beiroa e a viola campaniça, desaparecidos o tio Manuel Moreira, de Penha Garcia, e o Jorge Caranova, de Santa Vitória?... E quando se for o Virgílio Cristal, quem ficará para tocar o deslumbrante tamboril e flauta em terras mirandesas?... É bom, é mau? É a lei dos tempos para lá do bom e do mau... e quando as alvíssaras da Páscoa ou as alvoradas dessas bárbaras festas transmontanas forem feitas por um altifalante instalado numa furgoneta que atroa os ares com a última canção duma vedeta da rádio, o mundo terá certamente perdido uma grande riqueza - ou melhor: a riqueza do mundo valerá muito menos a pena ser vivida”.
Voltando à música propriamente dita, já foi aqui referida a sua utilização no trabalho duro do campo. Apesar de existirem resultados contraditórios, há pelo menos 3 trabalhos publicados, em revistas científicas, que demonstram que os grupos de trabalhadores a quem foi disponibilizada música durante o período laboral, mostraram um aumento dos níveis de satisfação, motivação e produtividade. Isto acontece, em primeira instância, porque a música nos ajuda a “passar o tempo”, minimizando a sensação de demora na execução. Mas se olharmos para esses resultados, do ponto de vista biológico, percebemos que, as referidas melhorias se devem a uma “droga natural”: a dopamina. A música, à semelhança de muitas outras actividades prazerosas, faz com que este neurotransmissor seja libertado no cérebro. Esta é a hormona responsável pela sensação de conforto, prazer e bem-estar que experimentamos quando estamos perante algo que nos agrada profundamente.”
Continua
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